Um dia partilhei com o Miguel Saturnino uma publicação do Instagram de um tal artista/compositor/músico Zimoun, que cria grandes instalações sonoras com simples pequenos motores eléctricos que têm presas coisas que depois fazem barulhos com a rotação que os motores lhes imprimem. Neste caso eram longas varas metálicas que com as rotações lentas batiam umas nas outras, criando um som que faz um pouco lembrar os sinos que põem ao pescoço das vacas.
Ele respondeu-me simplesmente: «Som de uma manada do futuro». Ao que eu respondi «isso é um bom título, vou fazer uma música com esse título».

Sem grande raciocínio consciente, quase como que automaticamente, assumi que o título teria significação simbólica/metafórica, o que faz sentido: não ia fazer uma música sobre literais touros que vinham do futuro. Se bem que até podia.
Sendo metafórica, e sendo coisas que vinham do futuro, e tendo eu as tendências que tenho, mais uma vez mais ou menos por automatismo acho que assumi que a manada do futuro seria uma coisa má, e que como as coisas não podem realmente vir do futuro teria de ser algo mental, que não vinha realmente do futuro mas que nós imaginávamos que assim fosse.

Na verdade isto é tudo pós-racionalização: no fundo, foi um pouco instintivo, como se eu já soubesse do que se tratava a manada do futuro, e depois a letra foi só como se eu tivesse começado a puxar a ponta duma corda até ter a corda toda, mas eu já sabia exactamente que corda era.

Enquanto estava a construir a canção e a praticá-la, a certa altura disse «a mainada» em vez de «a manada» por engano e distracção, mas claro que tive logo de aproveitar o trocadilho. Isto teve o condão de fazer com que a canção se transformasse em algo dirigido a alguém com o pronome feminino, mas mais que isso teve o condão de lhe dar um final mais optimista, o que me agradou.

Mas não penses que acho que é essa a solução para os problemas do futuro: a solução deverá passar mais pela consciencialização de que eles são de facto imaginários e que como tal devem ser tratados.
Ninguém sabe quais vão ser os problemas do futuro, portanto não podemos deixar que os possíveis problemas do futuro nos afectem.
Tudo bem, é bom «amainarmo-nos do futuro», planear para o futuro, ter algumas espécies de garantias acerca dele que nos ajudem a «amansar os touros», mas o mais importante é entender a condição hipotética destes problemas para relativizar o seu impacto num muito mais importante presente.

Esta canção é daquelas que é tanto para ti como para mim. Aliás, eu entendi, com esta epopeia de tanta criação musical, que me faltava este modo de comunicação comigo mesmo, que andava meio desligado de mim mesmo porque não estava a dar uso a esta ponte que me liga a mim.
Este facto terá sido talvez um dos motivos pelos quais parece ter sido das que mais intensamente terá tocado quem a ouviu no Instagram originalmente. Talvez simplesmente seja mais sincera. ®